Desafios à Igreja Católica de Cabo Verde, Hoje! (2ª parte)

Recordo o que escrevi num destes blogs sobre a constituição genética do povo caboverdeano, que é verdadeiramente crioulo, com identidade muito própria: nem completamente africanos nem completamente europeus. Tal constatação reflecte-se também na sua índole religiosa. Parece-me que tais devoções desempenham, na psicologia e na espiritualidade dos católicos caboverdeanos um referencial semelhante ao das religiões tradicionais na África continental, enquanto anímica fonte de recurso e de espontânea referência. Só que, neste caso, ela é de identificação cristã, europeia e portuguesa. 


Como as festas e as procissões continuam a demonstrá-lo, esta herança religiosa ancestral tem um grade poder de mobilização. Mas, parece-me, isso não significa que seja aquela piedade popular de que fala o Papa Francisco (EG, 69, 90, 70, 122-126, 193, 169) capaz de galvanizar as novas gerações.

Por me parecer tão anímico, é que carece, também, de um novo anúncio de Jesus Cristo, enquanto recurso recriador das vidas nos novos contextos.


Há quem diga que esta falha é que tem deixado espaço demasiado livre para as seitas se irem implantando. Se elas fossem instituições libertadoras, daríamos graças a Deus. Mas quem não conhece o fanatismo sufocante de algumas delas e, sobretduo, da IURD, famosa pelo seu estilo manipulador das sensibilidades religiosas das pessoas mais angustiadas na vida? É que não se trata das Igrejas Protestantes de espírito ecuménico.


Sempre me pareceu que o àvontade com que a IURD crescia em Moçambique era proporcional à perda dos altos valores da libertação fundante da Pátria Moçambicana. Não sei o que se terá passado em Cabo Verde a este respeito, mas constou-me que o PAIGC de Pedro Pires, teria alguma culpa na importação de algumas destas seitas com as quais quis contrabalançar o peso histórico da Igreja católica. 


É curioso que, neste caso, parece coincidir com Ronald Reagan, o protagonista da desgraça ultraliberal que desde então vem avassalando o mundo. Com o fito de minar a força libertadora de alguns movimentos católicos, nunca descurou esta vertente da política religiosa, envolvendo-se, segundo se diz, no financiamento e na expansão de “movimentos religiosos americanos” pelo mundo onde as massas populares se levantavam em luta contra a opressão militarista e o capitalismo selvagem. Fez isso com o Brasil  (a IURD será, talvez, o fruto mais relevante dessa política religiosa anestesiadora), com toda a América Latina, com a África e até com Portugal, onde, logo a seguir ao 25 de Abil apareceram os famosos “Meninos de Deus” que parece terem-se metamorfoseado noutras denominações (os Mormons ou a IURD, não sei).

 Tudo isto faz parte do contexto e dos desafios que a nossa Igreja tem, hoje, pela frente, em Cabo Verde. A sua resposta criadora impõe-se. Parece-me que há que optar:
 
1º Decididamente, pela conscientização de toda a comunidade católica segundo o modelo da Lumen Gentium assumido e entendido (bem explicado e debatido a todos os níveis e sectores eclesiais, do mais simples batizado até aos padres no seu conjunto) nas suas implicações práticas. Sem esta conversão comunitária a uma genuína Igreja-Comunhão e de corresponsabilidade, dificilmente a Igreja, no seu conjunto, poderá aparecer de rosto limpo, transparente, irradiando como sinal credível e entusiasmante de Jesus Cristo. Não é esta uma das novidades que o Papa Francisco nos transmite com tanta simplicidade?


2º Por uma pastoral de pequenas comunidades, chame-se-lhe núcleos de bairro, comunidades de base, grupos de oração e acção. Pode ser muito variado o perfil destes grupos cristãos. O que é preciso é que, neles, as pessoas, pela proximidade experimentada, se sintam pedras vivas da Igreja inserida e comprometida no mundo envolvente.

Foi esta lúcida opção que, em Moçambique, deu azo a que, surgisse uma Igreja de pequenas comunidades ministeriais mais ou menos espalhadas por todo o país e com grande consistência e alguma autonomia, geridas por emergentes animadores locais leigos. É aquilo que costumo chamar de verdadeira descolonização da Igreja e seu enraízamento no coração do povo que a faz sua (como se lê nas conclusões da I Assembelia Nacional de Pastoral, Beira 1977).


3º Por uma pastoral bíblica, tal como o Papa Francisco recomenda na EG (174-175). Foi esta formação bíblica – mesmo embrionária, mas persistente e progressiva - que alicerçou os milhares de animadores emergentes nas pequenas comunidades que acima refiro e que eram, também elas, emergentes nas vicissitudes do processo revolucionário moçambicano. 


De uma vez por todas, os pastores mais responsáveis de hoje, em Cabo Verde, – os padres – devem, a meu ver, dar prioridade a esta pastoral. De outra maneira, continuarão a esgotar-se, em corridas de missas e demais sacramentos (baptismos, casamentos – e até funerais), sem grandes frutos na construção de verdadeiras e relevantes comunidades cristãs. Podem ter milhares de fiéis, e até colaboradores pontuais nisto ou naquilo, mas nunca terão comunidades de pessoas com envergadura e sentido de autonomia e corresponsabilidade, evangelizadoras do meio social, económico e político que as envolve.

Como é possível que depois de dezenas de anos, ainda me possa ter sido dito, nesta minha recente estadia que, numa “comunidade” em cuja festa do padroeiro participei, não haja, nem sequer uma pessoa que, eventualmente, ao domingo, se o padre faltar, possa presidir uma celebração da Palavra de Deus? 


Colocar a Bíblia nas mãos dos católicos é uma urgência incontornável. 50 anos depois da Dei Verbum (Vaticano II) já não se compreende que esta vertente da pastoral não seja sentida como tal por todos os agentes pastorais, sobretudo os padres, que se esgotam no serviço do sacramentalismo. No entanto, parece-me que  correr de missa para missa pode até ser enganador e desvirtuar a própria celebração da eucaristia.


Urge um novo estilo de Igreja, mais próxima, mais espaço de expressão das inquietações e anseios das pessoas de todas as idades, incluindo do mundo jovem;


Impõe-se um novo anúncio evangelizador, capaz de voltar a fermentar as tradicionais manifestações de piedade incutindo-lhe mais dinâmica, mais adequação existencial, mais vitalidade evangélica, mais genuína e libertadora sedução.


Poderão perguntar-me se detectei forças latentes nas Igrejas onde passei. Em qualque das ilhas (Sal, S.Vicente, S.Nicolau, Boavista – Diocese do Mindelo - e, agora, cidade da Praia- Diocese Santiago ) encontrei muitas pessoas não só disponíveis mas, mesmo, ansiosas por que, também aqui, se operacionalize o apelo de renovação que propus, tendo como pano de fundo a minha experiência com as comunidades cristãs em Nampula (de alguma manira generalizado em todo o Moçambique): comunidades ministeriais que envolvam todos os seus membros, alimentando-se da Palavra de Deus (com uma prática de leitura orante fundamentando e incentivando os cristãos aos compromissos na comunidade e no mundo.

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Nota: o texto acima complementa uma introdução feita numa mensagem "post, para os entendidos" de 2/9/2014, que se iniciava assim:


Na minha recente estadia de um mês em Cabo Verde, um padre e um seminarista, perguntavam-me, em momentos diferentes, o que achava da Igreja católica do seu país. Com alguma prontidão, disse que me parecia excessivamente clericalizada. Parece que se não há padre, tudo pára. Ainda se me apercebi que houvesse leigos que se sentissem parte viva nas responsabilidades tanto pastorais como administrativas das paróquias.


No entanto, sou testemunha dos esforços que o Bispo Arlindo Furtado (Diocese de Santiago/Praia) e do Bispo Ildo Fortes (Diocese do Mindelo), desenvolvem no sentido de incutirem às suas Igrejas locais um rosto mais de acordo com o modelo da Lumen Gentium do Concílio Vaticano II: uma Igreja de índole mais comunional, de maior corresponsabilidade de todos os batizados. As minhas duas visitas, em setembro de 2013 e a deste mês de agosto, enquadram-se neste esforço como se pode constatar nos relatos que deixei, já no ano passado neste blog.


Por razões que ainda não me atrevo a referir aqui (precisarei de mais tempo de estudo do fenómeno e da história), é evidente que o povo católico funciona, ainda, muito umbilicalmente dependente do clero.


É uma pesada herança do catolicismo português que os padres (e o seu estilo europeu) ainda não conseguiram metamorfosear. São marcas de uma religiosidade tradicional que também pesa muito em Portugal. Em Cabo Verde, permanece uma Igreja de devoções a Nossa Senhora e a muitos santos e santas de evidentes marcas portuguesas.